quinta-feira, julho 06, 2006

Carros (Cars, John Lasseter/John Ranft, 2006)

Catchu! Catchá!

Carros? Uma história em que carros são personagens? Sim, senhor. E, a despeito da minha opinião afetada no que concerne tudo o que vem da Pixar, uma história mais ou menos boa, com um tratamento magnífico e um resultado esplendoroso. Com Carros a Pixar assegura não apenas sua capacidade de fazer dinheiro, mas sua capacidade de transformar tudo e qualquer coisa num exemplo de maestria em cinema, storytelling, timing e tudo mais que diz respeito à prática da sétima arte.

Relâmpago McQueen (voz de Owen Wilson no original), um estrela em ascendência no mundo das corridas, é um carro de alta performance com potencial para ser um vencedor. E ele sabe disso, e por isso se porta como uma. Despreza antigos carros enferrujados, ainda que estes sejam seus patrocinadores, não se importa em dispensar um bom tratamento à sua equipe, ainda que obviamente precise deles, e sua mente é completamente voltada para a idéia da vitória a qualquer custo. Este tratamento não é exatamente original, mas faz sentido, e até então é utilizado num novo formato.

Numa corrida cheia de percalços, McQueen termina empatado com Chick Murphy (voz de Michael Keaton), seu concorrente direto, e o que mais se aproxima de vilão da história, e O Rei, o campeão até então. Como valia o campeonato, a corrida de desempate fica combinada para uma semana após estes eventos. Tudo certo, McQueen parte para o destino com Mack, o caminhão de sua equipe, e aparentemente o único personagem com quem o protagonista tem uma relação amigável, ou algo próximo disso. Atos imprudentes seguem-se e, numa série de eventos desafortunados, Relâmpago vai parar numa pequenina cidade chamada Radiador Springs, à beira da Rota 66, a famosa interestadual que corta os Estados Unidos de Illinois à Califórnia.

É em Radiador Springs que McQueen fica preso, tendo que consertar os danos que causou, e é nesta cidade que o filme se desenrola, com seus personagens fantasticamente caracterizados, como é de praxe em filmes com o selo de qualidade Pixar. As referências e lições e tudo o que é necessário acontecer, num movimento catártico de acontecimentos, acontece. Surgem Sally, o par amoroso de McQueen, Doc Hudson, o mentor, Mate, o inocente caipira responsável por muitas risadas e todos os coadjuvantes que terminam por acrescentar ao filme um colorido - literal e metafórico - que tornam Carros algo muito especial, não apenas em suas miudezas, mas também na idéia que pretende veicular, e que também foi um dos motes publicitários: "A vida é uma jornada. Aproveite o passeio".

Algumas questões, no entanto, merecem algum destaque. Tecnicamente o filme é irrepreensível. Tanto em termos de fotorrealismo quanto em termos de design, de produção e/ou de personagens, até chegarmos ao aspecto cinematográfico. Nota-se um domínio das ferramentas e uma relação com o que se cria que diferencia as peças da Pixar de qualquer outro produto que se tenha no mercado do cinema. Como se diz, você pode criar as suas próprias regras, contanto que as siga. E é isso que a Pixar faz. O que vemos na tela não é só um amontoado de carrinhos e uma historinha medíocre. Muito pelo contrário: há um universo muito particular, extremamente bem desenvolvido nos 116 minutos de projeção. Os personagens, que pelo fato de serem carros realmente dificultam uma aproximação no início, logo possuem carisma e brilho e idiossincrasias próprios que transformam-nos em personas de fato. E isso não é só efeito de um lipsync competente: reações, tempos, atitudes, aparência. Está tudo lá. E tudo funciona perfeitamente bem numa engenharia em que várias pequenas peças constróem personalidades tão marcantes quanto é possível numa criação adulta, que a despeito de indiscutível poder sobre adultos, é direcionada para o público infantil. A promoção de uma discussão moral incomoda, a despeito de ser notadamente pouco comum à Pixar, que prefere se concentrar em contar boas histórias executadas de maneira competente, mas não chega a desvirtuar um produto final que intersecciona fetiches infantis relativos a carros que falam e agem por conta própria, e adultos, com seus Willys MB, Hudson Hornets, Buick XP-300 e Chrysler Darts.

É assim que invalidamos críticas feitas à "industrialização de sentimentos", ou à "falta de preocupação da Pixar com a poluição do ar" e outras feitas neste sentido. É preciso levar em consideração que por trás da obra, existe um autor. John Lasseter, headman da Pixar (e agora também da Disney), disse e disse outra vez que a idéia pra Carros surgiu numa viagem que ele mesmo fez pela Rota 66. O amor por automóveis expresso no cuidado com o tratamento visual, no amor que alguns carros possuem por outros e até nos cenários, que vez ou outra possuem a forma de detalhes muito característico do design de determinados carros, é tão louvável quanto qualquer outro que se manifesta cinematograficamente. Há a necessidade de se pensar sobre problemas da ordem dos que foram apresentados, certamente, mas trocar os carros por cenouras ou pratos de vidro não me parece a solução. É verdade que a idéia de que ter amigos é o que importa na vida soe datada e um tanto vazia, e que o pecado cometido aqui seja justamente o da tentativa de conferir um lastro moral ao que deveria ser uma boa história muito bem contada, como é o caso de Procurando Nemo e Os Incríveis, pra citar a produção recente, mas Carros é, antes de qualquer outra coisa, um produto Pixar.

2 comentários: