domingo, dezembro 03, 2006

O Labirinto do Fauno (El Laberinto Del Fauno, Guillermo Del Toro, 2006)

Pôster desenhado por Mike Mignola

Fui ontem assistir O Labirinto do Fauno, última obra de Guillermo Del Toro que já nos havia trazido produtos relativamente interessantes (Hellboy) e outros nem tanto (Blade 2). Uma das marcas do trabalho dele no passado era justamente não deixar muitas marcas, o que não é de todo incomum, se formos pensar em direção de filmes montados para ser sucessos comerciais. Mas neste trabalho em específico, talvez por ser uma obra bastante autoral (falada em espanhol, inclusive), podem-se ver escolhas narrativas e gráficas que mostram-se traços de um controle quase pleno por quem escreveu, produziu e dirigiu o filme.

A história começa na Espanha franquista, em 1944, na qual Ofelia, uma menina que adora livros, vive sozinha com sua mãe, Carmen, que por sua vez está grávida do Capitão Vidal, um cara muito, muito malvado. Militar, machista, católico e de extrema direita, o Capitão vai esmagando crânios e arrancando pedaços de pessoas perigosas ao regime que ele serve numa fazenda próxima a um dos focos de rebelião. Como ele crê que "um filho deve nascer onde seu pai está", lá vêm Carmen e Ofelia para viver junto dele.

Ao chegarem na casa, as duas entram em contato não apenas com uma reprodução em menor escala do regime que governa o país - militarista, machista, católico e esmagador de crânios - mas também com pessoas que servem ou fingem servir este regime. Ofelia, e apenas ela, entra em contato, também, com seres míticos que vivem num labirinto que existe nos derredores da casa, através de uma fada que surge quando ela recoloca no lugar um olho caído de uma estátua - olhos são um elemento que Guillermo Del Toro utiliza com grande força simbólica aqui.

Dentre essas criaturas, encontra-se o fauno que aparece no título, que ao contrário do que vemos de maneira geral (em produtos da Disney, por exemplo), é uma criatura deveras assustadora, tanto sonora quanto visualmente, em especial quando sai ou entra nas sombras de um canto escuro de um quarto, uma imagem terrivelmente amedrontadora. Este fauno, cujo nome "só pode ser proferido pelo vento e pelas árvores", segundo ele mesmo, explica a Ofelia que ela é a princesa de um reino antigo e que seu pai verdadeiro (a garota é órfã paterna, e se recusa a chamar o capitão de pai, como sua mãe insiste em pedir) espalhou portais pelo mundo, a fim de que, quando ela descobrisse a verdade, pudesse voltar para seu reino. No entanto, ela precisa provar que é a princesa, e para isso cumprir três testes que envolvem não apenas elementos fantásticos, mas repercussão também no mundo real em que o Capitão Vidal reina absoluto.

Faunos saindo de cantos escuros de quartos são algo a se temer, não?

As influências mais do que claras de contos de fada (em especial Alice no País das Maravilhas, com direito a indumentária e portas miúdas), são um elemento metalinguístico forte, que gera um dos conflitos que move o filme: estará Ofelia imaginando tudo ou o fauno existe mesmo? As pessoas que vivem a sua volta, como Mercedes, uma das pessoas que trabalha na casa e esconde um segredo que mais tarde trará grandes consequências, diz a ela que faunos não são confiáveis e que acreditava em fadas na infância, mas que agora não crê mais nessas coisas. Sua mãe, que carrega no útero o filho homem do capitão, sendo esta, declaradamente, sua única utilidade no mundo, também grita que não existe magia, não existem faunos e que o mundo é menos bonito do que Ofelia o força a ser.

Esta discussão, inclusive, torna mesmo o mundo encantado que só a menina conhece e para o qual luta para voltar um mundo feio, com criaturas decadentes e elementos de horror muito claros. O próprio filme sucede em se posicionar como um filme de horror, tanto psicologicamente (se Carmen morrer, onde vai parar Ofelia?) quanto em termos de imagens, mesmo estas se subdivindo em duas instâncias: o mundo real (pessoas sendo assassinadas friamente e através de meios cruéis por homens fardados) e o mundo encantado (criaturas devoradoras de crianças que têm olhos nas mãos). As imagens medonhas, inclusive, têm uma grande influência do trabalho de Mike Mignola, talvez o maior autor de quadrinhos de horror de nossos tempos, e amigo pessoal de Guillermo Del Toro.

Eu não conseguiria pensar em algo tão escrotamente bizarro.

É também algo a se pensar a maneira como a narrativa sobrepõe as duas realidades de maneira que significações sejam explicitadas, ou algo próximo disso, de maneira inteligível: a criatura que se alimenta de fadinhas (e crianças, como somos informados através de uma pintura), a despeito do banquete posto à sua frente não demonstra nenhum desejo por ele, preferindo molestar as criaturinhas indefesas. Ora, não é isso que faz um regime autoritário como o franquista? O horror das extremas direitas, que já havia sido explorado por Mignola e Del Toro em Hellboy, tanto nos quadrinhos como no filme, reaparece aqui, com os uniformes cinzentos e a falta de escrúpulos. A presença de criaturas que possuem os mesmos hábitos ruins que o governo na fantasia de uma criança, tornam o contexto no qual vive um tanto mais compreensível, e denota uma crítica mordaz por parte do infante em questão.

A utilização deste recurso no filme talvez seja seu maior mérito. A construção da narrativa como um conto de fada (de terror), ainda que não se saiba se o que vemos é um de fato ou apenas os devaneios infantis de Ofelia tornam a experiência cinematográfica aqui bastante aprazível. Me pergunto o que acontece com pessoas, como as que estavam na minha sessão, que ao final do filme exclamam "que porcaria!". Será que elas estavam falando sério? E eu, do fundo do meu poço, vejo méritos não apenas no filme per se, mas também no que é claramente um amadurecimento técnico do cinema que não é falado em inglês. Em termos de apuro técnico, esse filme não fica devendo nada a um Senhor dos Anéis da vida, com a vantagem de ser muito, muito mais autoral. Aparece como algo a se somar ao que um Almodóvar, ou os argentinos já fazem há algum tempo, que é estruturar dramas humanos de maneira eficiente, ainda que nestes casos não se faça presente, e nem necessário, a inclusão digital ou via animatronics de criaturas fantásticas.

1 comentário:

  1. É um filme deveras inesquecível...
    Ótima crítica!
    =D

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