segunda-feira, fevereiro 19, 2007

Sessão dupla: O Homem Duplo (A Scanner Darkly, Richard Linklater, 2006) e A Conquista da Honra (Flags Of Our Fathers, Clint Eastwood, 2006)

Domingo anterior ao feriado de Carnaval, sem nenhuma das características de domingo. Nenhuma viv'alma nas ruas, e provavelmente também não nos cinemas. Como queria desesperadamente ver os dois filmes, pareceu-me a oportunidade perfeita pra uma dupla sessão.

O Homem Duplo (A Scanner Darkly, Richard Linklater, 2006)


Everything is not going to be ok

Não é segredo a minha fascinação por literatura. Menos ainda se for ficção científica. E ainda menos se for por Philip K. Dick. A cada vez que leio uma biografia dele e encontro uma ou outra informação que ainda não conhecia, fico mais e mais intrigado por este que talvez seja o autor mais poderoso - apesar de que dizer isso me dá um frio na espinha, pois pipocam na minha cabeça nomes como Asimov, Clarke, Gibson, Ballard - do estilo no século passado, que é quando tudo começa.

É importante observar que a obra que o K Dick legou ao mundo no século XX é especialmente única. É muito mais do que "apenas" ficção científica, muito mais do que "apenas" literatura. É bem visível na obra dele a pertinência da frase que o Robert Anton Wilson cita no prefácio de Futuro Proibido: "A realidade é uma muleta pra quem não consegue lidar com a ficção científica". O conteúdo que exibido nos textos de PKD são de uma profundidade aterradora. Olhando pra obra dele é impossível não se assustar com a quantidade de obras e conteúdos muito pesados abordados. Engraçado como o tempo passa e o que ele discutiu a trinta, quarenta anos atrás fica mais explícito, mais atual e ainda mais perturbador. E a genialidade fica cada vez mais indiscutível. Qualquer dia eu faço aqui uma tradução do monstruoso How to build an universe that doesn’t fall apart two days later, um texto de 1978 que ilustra mais do que bem essa genialidade da qual eu não me canso de falar.

Sobre o filme, omo era de se esperar numa adaptação, surge um sentimento de atropelamento. Quem leu o livro (que já tem até crítica), termina por se perguntar onde está essa ou aquela cena. Mas a despeito disso, o Linklater é um cara bem competente, e fica no ar uma alegria juvenil de ver tão bem adaptada uma obra do tamanho de O Homem Duplo.

É levada aqui de maneira menos experimental do que em Waking Life a técnica chamada rotoscopia, em que uma filmagem é transformada em animação. Waking Life era uma obra sobre pensamento, tinha muito de filosofia, de discussões linguísticas, de possibilidades de comunicação, e a técnica respaldava com imagens o que era discutido (a idéia da criação dos sons pra "cuidado com o tigre"), ou ela mesma era a discussão (quando um homem se queima pra chamar atenção). Aqui o que temos é a técnica utilizada pra simular efeitos psicotrópicos e cognitivos, dando suporte aos diálogos que, pra quem conhece um pouco de alteração de faculdade mentais, já são a dica.

A incapacidade de contar quantas marchas tem uma bicicleta, o sentimento de querer se isolar, a paranóia, as alucinações. Está tudo lá, criando o sentimento de desorientação pretendido e que funciona muito bem nessa adaptação especificamente. Claro que há outros detalhes que transcendem a experiência na sala de cinema, e estendem-se pra outros elementos, de maneira que o valor do filme constrói-se também através da crítica, ou da absorção, de valores existentes além dele mesmo. A proposta de Linklater de trabalhar com atores que publicamente já foram ou são drogaditos num filme que, em determinado momento, critica a estrutura que termina no esmagamento do indivíduo por fatores externos, químicos ou não, certamente não é um acidente. É visível, e aí entra também o fator místico kdickiano, a proposta de apontar dedos para lugares pouco visitados, ao invés de lidar com a coisa de maneira simplista.

What does a scanner see? Into the head? Down into the heart? Does it see into me? Into us? Clearly or darkly?

Considerando que a temática do filme é o consumo de drogas de maneira que o indivíduo se perde em meio às várias camadas de realidade, o resultado poderia ser uma baboseira anti-drogas do tipo "pare de usar e seja feliz", mas não é o caso. A quem beneficia a cultura (inclusive no aspecto agronômico) das drogas? A maneira como se lida com isso é a correta? Até onde vai o poder do indivíduo em relação a substâncias químicas que alteram a realidade? As perguntas estão todas lá, ainda que muitas não tenham resposta - e talvez nunca tenham. Surpreendeu a inclusão ao final de um trecho do posfácio presente no livro em que PKD cita nomes de pessoas próximas a ele que morreram ou tiveram problemas permanentes decorrentes do abuso de substâncias narcóticas.

As decisões que Linklater tomou na adaptação foram as mais acertadas, e o resultado é um filme que definitivamente não é pra todo mundo, principalmente pela ausência do simplismo tão em voga em Hollywood (visual, textual, conceitual) e dos valores tão bem quistos pelo cidadão comum, de bem. Era um filme que eu esperava ansiosamente e que não decepcionou. Aguardo ansiosamente pela versão em DVD.

A Conquista da Honra (Flags Of Our Fathers, Clint Eastwood, 2006)

O poster do filme, que é pouco mais do que a foto original romanceada

A Conquista da Honra, de Clint Eastwood, não é um filme de guerra. Tem soldados, tem armas, tem sangue e tem batalhas, mas não é um filme de guerra. Esse conceito reducionista é tão bobo quanto afirmar que "Matrix é um filme sobre um homem que aprende a lutar bem rápido". Fato é que o Clint Eastwood é especialista em revisitar gêneros. Nos idos da década de 70, quando ele ainda era um diretor novato - esse é o segundo longa-metragem dirigido por ele -, revisitou o western com seu Um Estranho Sem Nome (High Plains Drifter, Clint Eastwood, 1973). Depois revisitou várias coisas, umas com mais sucesso como o road movie Um Mundo Perfeito (A Perfect World, 1993) e o thriller Sobre Meninos e Lobos (Mystic River, 2003), outras com menos, mas a verdade é que o cara é um gênio do cinema. Se enquanto ator a carreira dele foi enclausurada pelo misterioso durão, a de cineasta, na maior parte do tempo, trouxe produtos de inquestionável qualidade.

Em todas estas incursões por gêneros já bem estabelecidos, Eastwood acabou sempre trazendo a estes gêneros um fator humano muito potente, que acabava por jogar com os sentimentos do espectador, criando empatias e expectativas que em condições normais - ou nas mãos de um outro cineasta qualquer - não existiriam. Me lembra, inclusive, de um Biography do canal A&E Mundo que vi alguns anos atrás, sobre o próprio Clint, e no qual uma pessoa próxima a ele - que não me lembro exatamente quem era - dizia que a despeito da carreira de ator dele ser baseada no arquétipo do cara que atira antes pra não ter que perguntar depois, o homem Clint Eastwood "está muito mais pro intelectual do que pro machão". E isso é visível na obra dele como diretor.


Neste A Conquista da Honra temos a história - uma versão dela, ao menos - da emblemática fotografia tirada in loco durante a batalha de Iwo Jima, em plena Segunda Guerra Mundial. O poder da fotografia, "Raising the Flag on Iwo Jima" de Joe Rosenthal, é tão grande que qualquer pessoa que tenha ao menos um dos olhos funcionando certamente já se deparou com ela, ou com uma paródia dela. Não raro, ela é vista como uma imagem da vitória estadunidense no conflito em questão, mas as informações sobre ela não vão, ou não iam, muito além disso. E o que o filme se esforça pra mostrar é justamente como uma imagem banal - como ele mesmo nos conta - se transformou num símbolo que impulsionaria os EUA - inteiros, incluindo aí pais de soldados mortos, políticos e a população em geral, além dos militares - a um estado de quase-transe, dando respaldo a uma guerra que havia durado demais, esmagando, no entanto, os indivíduos envolvidos no caminho.

O homem em ação

Três dos seis envolvidos na foto sobreviveram à batalha, e foram mandados de volta à terra firme, onde foram utilizados neste poderoso programa de publicidade bélica engendrado pelos líderes interessados na guerra, como elemento humano, ou de humanização, do conflito como um todo. A idéia era vender bônus para subsidiar a luta que aquele que poderia ser seu filho, seu irmão, seu noivo estava lutando por você. E deu certo. Os EUA, logo após a Segunda Guerra, avançaram muito e tornaram-se essa criatura imensa e cheia de contradições que conhecemos.

E Clint Eastwood traz à tona esta imagem, estas referências e este contexto num momento em que a guerra do Afeganistão ainda mata muito mais jovens do que a população imaginou, a guerra do Iraque continua em voga e a discussão de tudo isso, estranhamente, só esfria. Numa leitura rasa, poderíamos pensar que é um filme guerra, em que os EUA celebram sua vitória, transformando indivíduos em heróis, mas muito mais evidente é o massacre pelo qual passaram os indivíduos, formalizados na imagem dos tais sobreviventes das fotos. As cenas em que rojões confundem-se com bombas, e gritos de gente que morreu em campo continua ecoando nos ouvidos de quem estava lá pra ouvir, me remeteram ao trabalho do pintor alemão Otto Dix. Numa exposição de gravuras dele que passou por Brasília alguns anos atrás, um texto dizia que após lutar na Primeira Guerra Mundial, ele passou o resto da vida tendo pesadelos todas as noites. Talvez saber desta história especificamente tenha transformado minha experiência em relação à película, mas o fato é que não consegui ver em A Conquista da Honra o que o Kleber Mendonça viu.

Óbvio que há a condição do herói, e caracteres campbellianos como o mentor que se sacrifica e tudo o mais estão lá, mas é muito claro que a construção da mentira, ou das meias-verdades, é que delimitam o conhecimento e a construção, ou desconstrução, dos personagens. Um deles se afoga nas meias-verdades da própria vida, outro enterra o passado pra viver uma vida normal - a história é narrada pelo filho de John Bradley (Ryan Philippe) e existe de fato no formato de livro, enquanto aquele que tem menos potencial pra ser um queridinho da América (quase um antípoda de John Cusack), especialmente do ponto de vista étnico, não consegue se encaixar no papel que é imposto a ele, tendo sido inclusive tema de uma música bem triste do Johnny Cash.

O destaque, do ponto de vista técnico, certamente fica pra montagem, com cenas em primeira pessoa que me fizeram lembrar de Medal Of Honor, e em como esse artifício pode parecer pobre, especialmente se pensamos em um filme como Doom, mas é utilizado com elegância por Clint Eastwood, que se esforça pra construir a guerra de uma maneira muito menos bonita do que Michael Bay, e menos espetacular do que Steven Spielberg (que produz o filme, tornando-se um especialista em WW2 depois de A Lista de Schindler, O Resgate do Soldado Ryan e a série Band Of Brothers. O inegável talento dele pra produção fica pra outra discussão).

Espero a estréia de Cartas de Iwo Jima, um ousado outro lado da história que Clint Eastwood filmou - fortalecendo a minha compreensão de que o aspecto humanista reinou absoluto na dupla de filmes - contando a relação dos japoneses com a mesma batalha.

2 comentários:

  1. caramba.
    eu estava lá, e como sempre, não fui capaz de ver todas essas nuances que vc mencionou, em ambos os filmes.
    é preciso dizer que concordo em gênero, número e grau?

    genial. sem puxa-saquismo.

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  2. Morreu o filósofo e sociólogo francês Jean Baudrillard

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