sábado, abril 21, 2007

Pre-estréia: Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock'n'Roll (Idem, Otto Guerra, 2006)

O cartaz

Já aviso a quem for ler: meu interesse por quadrinhos nacionais é quase nulo. E não me venham com essa baboseira de "colonizado" e argumentos mequetrefes do gênero. Quando vejo alguém dizer que "Angeli é deus" sinto até uma dor no coração. Respeito o trabalho não só dele, mas dessa geração toda, mas exclusivamente pela autenticidade, pois a exploração do potencial do meio HQ que esses caras fazem é quase zero. O Angeli tem umas coisas engraçadas, o Gonsales idem. O Laerte não se encaixa muito nisso que eu tô dizendo (a série dos palhaços mudos é foda), mas de maneira geral, os trabalho desse pessoal não me apetece. Dizer que qualquer autor nacional, especificamente de humor, é gênio, é colocar autores que utilizam os quadrinhos de maneira mais interessante num patamar um pouquinho mais alto da grande consciência cósmica que organiza o universo. Roteiristas? Alan Moore, J M DeMatteis, Garth Ennis, Warren Ellis, Neil Gaiman, Jodorowsky. Artistas? John J Muth, Dave Gibbons, Bernie Wrightson, Bill Sienckewicz. Ah, a gente tá falando de tirinhas? Bill Waterson, Charles Schulz, Jim Davis. Não tem jeito. Tem gente demais usando os quadrinhos de forma mais criativa e mais interessante do que ficar fazendo piadas internas de grupelhos oitentistas pra eu levar a produção nacional a sério.

Enfim, fui à pré-estréia do filme aqui em Goiânia, que ocorreu com uns bons cinco ou seis meses de atraso em relação a São Paulo. "Poucas cópias" disse o diretor Otto Guerra. Vá lá. E aqui, abro, pra fechar logo ali, parênteses pra dar os parabéns à organização do evento, que mostrou pra quem quisesse ver como desorganizar a coisa. Mais de uma hora de atraso, falta de filas, gente demais. Era o inferno na terra. Pra piorar, a grande multidão se comportava como um bando de animais, furando o esboço de fila que tentava em vão se formar. Não conseguia parar de pensar que se tivesse custado um mísero real - era de graça -, a quantidade de pessoas ia ser menor do que a metade, e a coisa toda teria sido muito menos desgastante.

Depois de passar pela provação que foi a espera, começa o filme. Eu já não esperava muito, pela antipatia que sinto por esse tipo de material, mas o resultado conseguiu ser muito pior do que eu havia imaginado. Um monte de piadas jogadas ao acaso, de maneira ruim, com tirinhas sendo transcritas na íntegra e uma total falta de timing, de narração, de bom senso. Me pergunto o que o diretor fazia enquanto a equipe (que decididamente não é a melhor do mundo) estava jogando a sombra de roteiro no computador. Porque direção não há. Sem contar a dublagem porca, piorada pelos previsíveis jabás, como a Rita Lee fazendo a voz da Rê Bordosa.

A história é sobre os anacrônicos hippies Woody e Stock tentando formar novamente a banda que tinham na década de setenta, mas é também sobre a Rê Bordosa e suas façanhas etílicas, e também sobre os conflitos entre pais e filhos, e também sobre os conflitos matrimoniais e, enfim, não é sobre nada. Todos os ingredientes são batidos no liquidificador (com pinga vagabunda) e o resultado não podia ser pior. O filme não decide se vai falar abertamente de drogas ou não, se vai dar uma lição de moral no final ou não, se vai chegar a algum lugar ou não. Em alguns momentos, a sensação é de estar assistindo a uma daquelas animações que o Maurício de Souza fazia no final da década de oitenta, e que eram ruins de doer. Reza a lenda que Wood & Stock levou dez anos da concepção ao produto final, mas eu não acredito nisso. Como levaram dez anos pra terminar aquilo? O Kurosawa - e a comparação é válida sim, já que estamos falando de cinema -, escrevia roteiros inteiros em um único dia. E isso na época em que ele fazia filmes de baixíssimo orçamento, e no entanto veja só onde ele foi parar - um dos mais geniais autores de cinema de todos os tempos.

E a qualidade da animação? Como eles conseguiram manter o nível tão baixo durante os 81 minutos de exibição? Porque meios de obter melhor resultado certamente existem, com softwares por aí que qualquer moleque usa de maneira muito mais eficiente, sem contar que animadores fazendo trabalhos (muito melhores) no braço existem desde a década de vinte. Os movimentos são cortados de maneira incômoda, a dublagem não bate com nada, e a emulação do desenho do Angeli definitivamente não funciona a 24 quadros por segundo. Nada ali funciona. É tudo muito, muito ruim mesmo. Não valeu a espera. Pra não dizer que foram horas completamente desperdiçadas, foi legal falar mal depois com a minha parceira no crime.

Me incomoda essa história de valorizar porque é nacional, valorizar porque é do Angeli, valorizar porque é humor. Valorizar besteiras como essa tende a nivelar sempre por baixo os trabalhos desse tipo que possam vir a surgir no país. Isso acontece nos quadrinhos, acontece no cinema e tudo indica que vai acontecer também na já defasada indústria da animação nacional.

A quem interessar possa, dêem uma olhada aí embaixo. Essa foi votada a melhor animação de todos os tempos por 1000 membros da indústria da animação em 1994, e foi produzida em 1957. Alguns podem dizer "Mas é de um grande estúdio". Vale lembrar que na época tudo era feito à mão, e se a tecnologia dessa indústria ainda não avançou o suficiente pra simplificar o processo e substituir os grandes investimentos, animadores brasileiros, por favor voltem a fazer tudo à mão.


segunda-feira, fevereiro 19, 2007

Sessão dupla: O Homem Duplo (A Scanner Darkly, Richard Linklater, 2006) e A Conquista da Honra (Flags Of Our Fathers, Clint Eastwood, 2006)

Domingo anterior ao feriado de Carnaval, sem nenhuma das características de domingo. Nenhuma viv'alma nas ruas, e provavelmente também não nos cinemas. Como queria desesperadamente ver os dois filmes, pareceu-me a oportunidade perfeita pra uma dupla sessão.

O Homem Duplo (A Scanner Darkly, Richard Linklater, 2006)


Everything is not going to be ok

Não é segredo a minha fascinação por literatura. Menos ainda se for ficção científica. E ainda menos se for por Philip K. Dick. A cada vez que leio uma biografia dele e encontro uma ou outra informação que ainda não conhecia, fico mais e mais intrigado por este que talvez seja o autor mais poderoso - apesar de que dizer isso me dá um frio na espinha, pois pipocam na minha cabeça nomes como Asimov, Clarke, Gibson, Ballard - do estilo no século passado, que é quando tudo começa.

É importante observar que a obra que o K Dick legou ao mundo no século XX é especialmente única. É muito mais do que "apenas" ficção científica, muito mais do que "apenas" literatura. É bem visível na obra dele a pertinência da frase que o Robert Anton Wilson cita no prefácio de Futuro Proibido: "A realidade é uma muleta pra quem não consegue lidar com a ficção científica". O conteúdo que exibido nos textos de PKD são de uma profundidade aterradora. Olhando pra obra dele é impossível não se assustar com a quantidade de obras e conteúdos muito pesados abordados. Engraçado como o tempo passa e o que ele discutiu a trinta, quarenta anos atrás fica mais explícito, mais atual e ainda mais perturbador. E a genialidade fica cada vez mais indiscutível. Qualquer dia eu faço aqui uma tradução do monstruoso How to build an universe that doesn’t fall apart two days later, um texto de 1978 que ilustra mais do que bem essa genialidade da qual eu não me canso de falar.

Sobre o filme, omo era de se esperar numa adaptação, surge um sentimento de atropelamento. Quem leu o livro (que já tem até crítica), termina por se perguntar onde está essa ou aquela cena. Mas a despeito disso, o Linklater é um cara bem competente, e fica no ar uma alegria juvenil de ver tão bem adaptada uma obra do tamanho de O Homem Duplo.

É levada aqui de maneira menos experimental do que em Waking Life a técnica chamada rotoscopia, em que uma filmagem é transformada em animação. Waking Life era uma obra sobre pensamento, tinha muito de filosofia, de discussões linguísticas, de possibilidades de comunicação, e a técnica respaldava com imagens o que era discutido (a idéia da criação dos sons pra "cuidado com o tigre"), ou ela mesma era a discussão (quando um homem se queima pra chamar atenção). Aqui o que temos é a técnica utilizada pra simular efeitos psicotrópicos e cognitivos, dando suporte aos diálogos que, pra quem conhece um pouco de alteração de faculdade mentais, já são a dica.

A incapacidade de contar quantas marchas tem uma bicicleta, o sentimento de querer se isolar, a paranóia, as alucinações. Está tudo lá, criando o sentimento de desorientação pretendido e que funciona muito bem nessa adaptação especificamente. Claro que há outros detalhes que transcendem a experiência na sala de cinema, e estendem-se pra outros elementos, de maneira que o valor do filme constrói-se também através da crítica, ou da absorção, de valores existentes além dele mesmo. A proposta de Linklater de trabalhar com atores que publicamente já foram ou são drogaditos num filme que, em determinado momento, critica a estrutura que termina no esmagamento do indivíduo por fatores externos, químicos ou não, certamente não é um acidente. É visível, e aí entra também o fator místico kdickiano, a proposta de apontar dedos para lugares pouco visitados, ao invés de lidar com a coisa de maneira simplista.

What does a scanner see? Into the head? Down into the heart? Does it see into me? Into us? Clearly or darkly?

Considerando que a temática do filme é o consumo de drogas de maneira que o indivíduo se perde em meio às várias camadas de realidade, o resultado poderia ser uma baboseira anti-drogas do tipo "pare de usar e seja feliz", mas não é o caso. A quem beneficia a cultura (inclusive no aspecto agronômico) das drogas? A maneira como se lida com isso é a correta? Até onde vai o poder do indivíduo em relação a substâncias químicas que alteram a realidade? As perguntas estão todas lá, ainda que muitas não tenham resposta - e talvez nunca tenham. Surpreendeu a inclusão ao final de um trecho do posfácio presente no livro em que PKD cita nomes de pessoas próximas a ele que morreram ou tiveram problemas permanentes decorrentes do abuso de substâncias narcóticas.

As decisões que Linklater tomou na adaptação foram as mais acertadas, e o resultado é um filme que definitivamente não é pra todo mundo, principalmente pela ausência do simplismo tão em voga em Hollywood (visual, textual, conceitual) e dos valores tão bem quistos pelo cidadão comum, de bem. Era um filme que eu esperava ansiosamente e que não decepcionou. Aguardo ansiosamente pela versão em DVD.

A Conquista da Honra (Flags Of Our Fathers, Clint Eastwood, 2006)

O poster do filme, que é pouco mais do que a foto original romanceada

A Conquista da Honra, de Clint Eastwood, não é um filme de guerra. Tem soldados, tem armas, tem sangue e tem batalhas, mas não é um filme de guerra. Esse conceito reducionista é tão bobo quanto afirmar que "Matrix é um filme sobre um homem que aprende a lutar bem rápido". Fato é que o Clint Eastwood é especialista em revisitar gêneros. Nos idos da década de 70, quando ele ainda era um diretor novato - esse é o segundo longa-metragem dirigido por ele -, revisitou o western com seu Um Estranho Sem Nome (High Plains Drifter, Clint Eastwood, 1973). Depois revisitou várias coisas, umas com mais sucesso como o road movie Um Mundo Perfeito (A Perfect World, 1993) e o thriller Sobre Meninos e Lobos (Mystic River, 2003), outras com menos, mas a verdade é que o cara é um gênio do cinema. Se enquanto ator a carreira dele foi enclausurada pelo misterioso durão, a de cineasta, na maior parte do tempo, trouxe produtos de inquestionável qualidade.

Em todas estas incursões por gêneros já bem estabelecidos, Eastwood acabou sempre trazendo a estes gêneros um fator humano muito potente, que acabava por jogar com os sentimentos do espectador, criando empatias e expectativas que em condições normais - ou nas mãos de um outro cineasta qualquer - não existiriam. Me lembra, inclusive, de um Biography do canal A&E Mundo que vi alguns anos atrás, sobre o próprio Clint, e no qual uma pessoa próxima a ele - que não me lembro exatamente quem era - dizia que a despeito da carreira de ator dele ser baseada no arquétipo do cara que atira antes pra não ter que perguntar depois, o homem Clint Eastwood "está muito mais pro intelectual do que pro machão". E isso é visível na obra dele como diretor.


Neste A Conquista da Honra temos a história - uma versão dela, ao menos - da emblemática fotografia tirada in loco durante a batalha de Iwo Jima, em plena Segunda Guerra Mundial. O poder da fotografia, "Raising the Flag on Iwo Jima" de Joe Rosenthal, é tão grande que qualquer pessoa que tenha ao menos um dos olhos funcionando certamente já se deparou com ela, ou com uma paródia dela. Não raro, ela é vista como uma imagem da vitória estadunidense no conflito em questão, mas as informações sobre ela não vão, ou não iam, muito além disso. E o que o filme se esforça pra mostrar é justamente como uma imagem banal - como ele mesmo nos conta - se transformou num símbolo que impulsionaria os EUA - inteiros, incluindo aí pais de soldados mortos, políticos e a população em geral, além dos militares - a um estado de quase-transe, dando respaldo a uma guerra que havia durado demais, esmagando, no entanto, os indivíduos envolvidos no caminho.

O homem em ação

Três dos seis envolvidos na foto sobreviveram à batalha, e foram mandados de volta à terra firme, onde foram utilizados neste poderoso programa de publicidade bélica engendrado pelos líderes interessados na guerra, como elemento humano, ou de humanização, do conflito como um todo. A idéia era vender bônus para subsidiar a luta que aquele que poderia ser seu filho, seu irmão, seu noivo estava lutando por você. E deu certo. Os EUA, logo após a Segunda Guerra, avançaram muito e tornaram-se essa criatura imensa e cheia de contradições que conhecemos.

E Clint Eastwood traz à tona esta imagem, estas referências e este contexto num momento em que a guerra do Afeganistão ainda mata muito mais jovens do que a população imaginou, a guerra do Iraque continua em voga e a discussão de tudo isso, estranhamente, só esfria. Numa leitura rasa, poderíamos pensar que é um filme guerra, em que os EUA celebram sua vitória, transformando indivíduos em heróis, mas muito mais evidente é o massacre pelo qual passaram os indivíduos, formalizados na imagem dos tais sobreviventes das fotos. As cenas em que rojões confundem-se com bombas, e gritos de gente que morreu em campo continua ecoando nos ouvidos de quem estava lá pra ouvir, me remeteram ao trabalho do pintor alemão Otto Dix. Numa exposição de gravuras dele que passou por Brasília alguns anos atrás, um texto dizia que após lutar na Primeira Guerra Mundial, ele passou o resto da vida tendo pesadelos todas as noites. Talvez saber desta história especificamente tenha transformado minha experiência em relação à película, mas o fato é que não consegui ver em A Conquista da Honra o que o Kleber Mendonça viu.

Óbvio que há a condição do herói, e caracteres campbellianos como o mentor que se sacrifica e tudo o mais estão lá, mas é muito claro que a construção da mentira, ou das meias-verdades, é que delimitam o conhecimento e a construção, ou desconstrução, dos personagens. Um deles se afoga nas meias-verdades da própria vida, outro enterra o passado pra viver uma vida normal - a história é narrada pelo filho de John Bradley (Ryan Philippe) e existe de fato no formato de livro, enquanto aquele que tem menos potencial pra ser um queridinho da América (quase um antípoda de John Cusack), especialmente do ponto de vista étnico, não consegue se encaixar no papel que é imposto a ele, tendo sido inclusive tema de uma música bem triste do Johnny Cash.

O destaque, do ponto de vista técnico, certamente fica pra montagem, com cenas em primeira pessoa que me fizeram lembrar de Medal Of Honor, e em como esse artifício pode parecer pobre, especialmente se pensamos em um filme como Doom, mas é utilizado com elegância por Clint Eastwood, que se esforça pra construir a guerra de uma maneira muito menos bonita do que Michael Bay, e menos espetacular do que Steven Spielberg (que produz o filme, tornando-se um especialista em WW2 depois de A Lista de Schindler, O Resgate do Soldado Ryan e a série Band Of Brothers. O inegável talento dele pra produção fica pra outra discussão).

Espero a estréia de Cartas de Iwo Jima, um ousado outro lado da história que Clint Eastwood filmou - fortalecendo a minha compreensão de que o aspecto humanista reinou absoluto na dupla de filmes - contando a relação dos japoneses com a mesma batalha.

domingo, dezembro 03, 2006

O Labirinto do Fauno (El Laberinto Del Fauno, Guillermo Del Toro, 2006)

Pôster desenhado por Mike Mignola

Fui ontem assistir O Labirinto do Fauno, última obra de Guillermo Del Toro que já nos havia trazido produtos relativamente interessantes (Hellboy) e outros nem tanto (Blade 2). Uma das marcas do trabalho dele no passado era justamente não deixar muitas marcas, o que não é de todo incomum, se formos pensar em direção de filmes montados para ser sucessos comerciais. Mas neste trabalho em específico, talvez por ser uma obra bastante autoral (falada em espanhol, inclusive), podem-se ver escolhas narrativas e gráficas que mostram-se traços de um controle quase pleno por quem escreveu, produziu e dirigiu o filme.

A história começa na Espanha franquista, em 1944, na qual Ofelia, uma menina que adora livros, vive sozinha com sua mãe, Carmen, que por sua vez está grávida do Capitão Vidal, um cara muito, muito malvado. Militar, machista, católico e de extrema direita, o Capitão vai esmagando crânios e arrancando pedaços de pessoas perigosas ao regime que ele serve numa fazenda próxima a um dos focos de rebelião. Como ele crê que "um filho deve nascer onde seu pai está", lá vêm Carmen e Ofelia para viver junto dele.

Ao chegarem na casa, as duas entram em contato não apenas com uma reprodução em menor escala do regime que governa o país - militarista, machista, católico e esmagador de crânios - mas também com pessoas que servem ou fingem servir este regime. Ofelia, e apenas ela, entra em contato, também, com seres míticos que vivem num labirinto que existe nos derredores da casa, através de uma fada que surge quando ela recoloca no lugar um olho caído de uma estátua - olhos são um elemento que Guillermo Del Toro utiliza com grande força simbólica aqui.

Dentre essas criaturas, encontra-se o fauno que aparece no título, que ao contrário do que vemos de maneira geral (em produtos da Disney, por exemplo), é uma criatura deveras assustadora, tanto sonora quanto visualmente, em especial quando sai ou entra nas sombras de um canto escuro de um quarto, uma imagem terrivelmente amedrontadora. Este fauno, cujo nome "só pode ser proferido pelo vento e pelas árvores", segundo ele mesmo, explica a Ofelia que ela é a princesa de um reino antigo e que seu pai verdadeiro (a garota é órfã paterna, e se recusa a chamar o capitão de pai, como sua mãe insiste em pedir) espalhou portais pelo mundo, a fim de que, quando ela descobrisse a verdade, pudesse voltar para seu reino. No entanto, ela precisa provar que é a princesa, e para isso cumprir três testes que envolvem não apenas elementos fantásticos, mas repercussão também no mundo real em que o Capitão Vidal reina absoluto.

Faunos saindo de cantos escuros de quartos são algo a se temer, não?

As influências mais do que claras de contos de fada (em especial Alice no País das Maravilhas, com direito a indumentária e portas miúdas), são um elemento metalinguístico forte, que gera um dos conflitos que move o filme: estará Ofelia imaginando tudo ou o fauno existe mesmo? As pessoas que vivem a sua volta, como Mercedes, uma das pessoas que trabalha na casa e esconde um segredo que mais tarde trará grandes consequências, diz a ela que faunos não são confiáveis e que acreditava em fadas na infância, mas que agora não crê mais nessas coisas. Sua mãe, que carrega no útero o filho homem do capitão, sendo esta, declaradamente, sua única utilidade no mundo, também grita que não existe magia, não existem faunos e que o mundo é menos bonito do que Ofelia o força a ser.

Esta discussão, inclusive, torna mesmo o mundo encantado que só a menina conhece e para o qual luta para voltar um mundo feio, com criaturas decadentes e elementos de horror muito claros. O próprio filme sucede em se posicionar como um filme de horror, tanto psicologicamente (se Carmen morrer, onde vai parar Ofelia?) quanto em termos de imagens, mesmo estas se subdivindo em duas instâncias: o mundo real (pessoas sendo assassinadas friamente e através de meios cruéis por homens fardados) e o mundo encantado (criaturas devoradoras de crianças que têm olhos nas mãos). As imagens medonhas, inclusive, têm uma grande influência do trabalho de Mike Mignola, talvez o maior autor de quadrinhos de horror de nossos tempos, e amigo pessoal de Guillermo Del Toro.

Eu não conseguiria pensar em algo tão escrotamente bizarro.

É também algo a se pensar a maneira como a narrativa sobrepõe as duas realidades de maneira que significações sejam explicitadas, ou algo próximo disso, de maneira inteligível: a criatura que se alimenta de fadinhas (e crianças, como somos informados através de uma pintura), a despeito do banquete posto à sua frente não demonstra nenhum desejo por ele, preferindo molestar as criaturinhas indefesas. Ora, não é isso que faz um regime autoritário como o franquista? O horror das extremas direitas, que já havia sido explorado por Mignola e Del Toro em Hellboy, tanto nos quadrinhos como no filme, reaparece aqui, com os uniformes cinzentos e a falta de escrúpulos. A presença de criaturas que possuem os mesmos hábitos ruins que o governo na fantasia de uma criança, tornam o contexto no qual vive um tanto mais compreensível, e denota uma crítica mordaz por parte do infante em questão.

A utilização deste recurso no filme talvez seja seu maior mérito. A construção da narrativa como um conto de fada (de terror), ainda que não se saiba se o que vemos é um de fato ou apenas os devaneios infantis de Ofelia tornam a experiência cinematográfica aqui bastante aprazível. Me pergunto o que acontece com pessoas, como as que estavam na minha sessão, que ao final do filme exclamam "que porcaria!". Será que elas estavam falando sério? E eu, do fundo do meu poço, vejo méritos não apenas no filme per se, mas também no que é claramente um amadurecimento técnico do cinema que não é falado em inglês. Em termos de apuro técnico, esse filme não fica devendo nada a um Senhor dos Anéis da vida, com a vantagem de ser muito, muito mais autoral. Aparece como algo a se somar ao que um Almodóvar, ou os argentinos já fazem há algum tempo, que é estruturar dramas humanos de maneira eficiente, ainda que nestes casos não se faça presente, e nem necessário, a inclusão digital ou via animatronics de criaturas fantásticas.

quinta-feira, julho 06, 2006

Carros (Cars, John Lasseter/John Ranft, 2006)

Catchu! Catchá!

Carros? Uma história em que carros são personagens? Sim, senhor. E, a despeito da minha opinião afetada no que concerne tudo o que vem da Pixar, uma história mais ou menos boa, com um tratamento magnífico e um resultado esplendoroso. Com Carros a Pixar assegura não apenas sua capacidade de fazer dinheiro, mas sua capacidade de transformar tudo e qualquer coisa num exemplo de maestria em cinema, storytelling, timing e tudo mais que diz respeito à prática da sétima arte.

Relâmpago McQueen (voz de Owen Wilson no original), um estrela em ascendência no mundo das corridas, é um carro de alta performance com potencial para ser um vencedor. E ele sabe disso, e por isso se porta como uma. Despreza antigos carros enferrujados, ainda que estes sejam seus patrocinadores, não se importa em dispensar um bom tratamento à sua equipe, ainda que obviamente precise deles, e sua mente é completamente voltada para a idéia da vitória a qualquer custo. Este tratamento não é exatamente original, mas faz sentido, e até então é utilizado num novo formato.

Numa corrida cheia de percalços, McQueen termina empatado com Chick Murphy (voz de Michael Keaton), seu concorrente direto, e o que mais se aproxima de vilão da história, e O Rei, o campeão até então. Como valia o campeonato, a corrida de desempate fica combinada para uma semana após estes eventos. Tudo certo, McQueen parte para o destino com Mack, o caminhão de sua equipe, e aparentemente o único personagem com quem o protagonista tem uma relação amigável, ou algo próximo disso. Atos imprudentes seguem-se e, numa série de eventos desafortunados, Relâmpago vai parar numa pequenina cidade chamada Radiador Springs, à beira da Rota 66, a famosa interestadual que corta os Estados Unidos de Illinois à Califórnia.

É em Radiador Springs que McQueen fica preso, tendo que consertar os danos que causou, e é nesta cidade que o filme se desenrola, com seus personagens fantasticamente caracterizados, como é de praxe em filmes com o selo de qualidade Pixar. As referências e lições e tudo o que é necessário acontecer, num movimento catártico de acontecimentos, acontece. Surgem Sally, o par amoroso de McQueen, Doc Hudson, o mentor, Mate, o inocente caipira responsável por muitas risadas e todos os coadjuvantes que terminam por acrescentar ao filme um colorido - literal e metafórico - que tornam Carros algo muito especial, não apenas em suas miudezas, mas também na idéia que pretende veicular, e que também foi um dos motes publicitários: "A vida é uma jornada. Aproveite o passeio".

Algumas questões, no entanto, merecem algum destaque. Tecnicamente o filme é irrepreensível. Tanto em termos de fotorrealismo quanto em termos de design, de produção e/ou de personagens, até chegarmos ao aspecto cinematográfico. Nota-se um domínio das ferramentas e uma relação com o que se cria que diferencia as peças da Pixar de qualquer outro produto que se tenha no mercado do cinema. Como se diz, você pode criar as suas próprias regras, contanto que as siga. E é isso que a Pixar faz. O que vemos na tela não é só um amontoado de carrinhos e uma historinha medíocre. Muito pelo contrário: há um universo muito particular, extremamente bem desenvolvido nos 116 minutos de projeção. Os personagens, que pelo fato de serem carros realmente dificultam uma aproximação no início, logo possuem carisma e brilho e idiossincrasias próprios que transformam-nos em personas de fato. E isso não é só efeito de um lipsync competente: reações, tempos, atitudes, aparência. Está tudo lá. E tudo funciona perfeitamente bem numa engenharia em que várias pequenas peças constróem personalidades tão marcantes quanto é possível numa criação adulta, que a despeito de indiscutível poder sobre adultos, é direcionada para o público infantil. A promoção de uma discussão moral incomoda, a despeito de ser notadamente pouco comum à Pixar, que prefere se concentrar em contar boas histórias executadas de maneira competente, mas não chega a desvirtuar um produto final que intersecciona fetiches infantis relativos a carros que falam e agem por conta própria, e adultos, com seus Willys MB, Hudson Hornets, Buick XP-300 e Chrysler Darts.

É assim que invalidamos críticas feitas à "industrialização de sentimentos", ou à "falta de preocupação da Pixar com a poluição do ar" e outras feitas neste sentido. É preciso levar em consideração que por trás da obra, existe um autor. John Lasseter, headman da Pixar (e agora também da Disney), disse e disse outra vez que a idéia pra Carros surgiu numa viagem que ele mesmo fez pela Rota 66. O amor por automóveis expresso no cuidado com o tratamento visual, no amor que alguns carros possuem por outros e até nos cenários, que vez ou outra possuem a forma de detalhes muito característico do design de determinados carros, é tão louvável quanto qualquer outro que se manifesta cinematograficamente. Há a necessidade de se pensar sobre problemas da ordem dos que foram apresentados, certamente, mas trocar os carros por cenouras ou pratos de vidro não me parece a solução. É verdade que a idéia de que ter amigos é o que importa na vida soe datada e um tanto vazia, e que o pecado cometido aqui seja justamente o da tentativa de conferir um lastro moral ao que deveria ser uma boa história muito bem contada, como é o caso de Procurando Nemo e Os Incríveis, pra citar a produção recente, mas Carros é, antes de qualquer outra coisa, um produto Pixar.

segunda-feira, junho 26, 2006

O Homem Duplo (A Scanner Darkly, Philip K. Dick, 1977)

Capa da edição portuguesa, da Coleção Argonauta


Mais uma vez Hollywood vai buscar influência de coisas obscuras pra falar de coisas obscuras através de produtos obscuros, que aparentemente são mais vendáveis atualmente do que contos de fadas. O que é estranho, considerando o tsunami de correção política que assola o mundo atualmente, com uma considerável intolerância a tudo o que é diferente, ou muito destoante do "normal", sendo execrado e pouco desejável.

Philip K. Dick, o autor de ficção científica do século XX mais adaptado para o cinema até o presente momento - Blade Runner, O Vingador do Futuro, Screamers, Minority Report, Impostor, O Pagamento e o novo A Scanner Darkly - deu origem a peças que são veículos pra idéias bastante heterodoxas, inclusive com alguns pontos que tendem a ser tocados mais de uma vez, como abuso de drogas, perda de identidade e a relação do indivíduo com a própria memória (Dick sofria de anamnese, a perda da capacidade de esquecer), mas que são quase sempre amenizadas pra tornar o produto final mais fácil de ser engolido pelas massas que frequentam multiplexes, sendo substituídos geralmente por ação turbinada, explosões barulhentas e um tipo de abordagem que não faz força pra ser fiel aos textos do prolífico autor.

A verdade é que os conceitos philipkdickianos que utilizam o cinema como meio pra se manifestarem estão lá, em menor ou em maior grau, pra quem conhece a obra do autor e mantém um olhar relativamente atento; Blade Runner é a melhor adaptação até então, com o material que estava em Andróides Sonham com Carneirinhos Elétricos? (Do Androids Dream Of Electric Sheep?, 1968), o romance que deu origem ao filme, claramente visível e adaptado de maneira extremamente competente por um Ridley Scott inspiradíssimo (saudades daquele tempo), enquanto O Pagamento é dirigido por John Woo.

A nova adaptação é de Richard Linklater, autor de coisas bem boas, como Antes do Amanhecer e Waking Life, sendo este a referência em termos de visualidade para o novo filme. O site oficial de A Scanner Darkly, inclusive, contém muito material interessante, e uma conexão irrepreensível com a trama, num belíssimo trabalho não só de design, mas também de marketing. Altamente recomendado.

Mas a proposta não era falar dos filmes, e sim do livro, absurdamente bom, seja você fã e consumidor de ficção científica - em especial de cyberpunk e análogos -, seja você um leitor. K. Dick nos leva a um possível futuro do passado no qual ele vivia - e eu não creio que ele imaginou quão perto chegaria da realidade de alguns anos depois -, em que os Estados Unidos da América são palco pra um intenso movimento de substâncias ilícitas e toxicômanos. Obviamente ainda existe uma parcela da sociedade que trava uma batalha contra as drogas, mas que está perdendo feio. No departamento de combate ao narcotráfico agentes especiais utilizam trajes que impedem completamente a sua identificação (fatos confusores, na tradução de Portugal que me chegou às mãos), enquanto nas ruas as drogas são comercializadas a céu aberto. Robert Arctor, ou simplesmente Bob Arctor, é um usuário pesado da Substância D, principal alvo dos esforços de combate ao tráfico de drogas por seu efeito devastador na mente de quem a ingere. Fred, o homem por trás de um dos trajes especiais, é agente secreto do combate às drogas, sua identidade sendo um mistério inclusive para seus superiores, que por sua vez o designam para a missão de acompanhar os passos de Robert Arctor e, inclusive, vigiar a casa onde Bob vive com outros junkies. O que torna tudo um tanto complicado é que Fred é Robert Arctor.

Philip K. Dick não concentrou seus esforços em criar um thriller psicológico situado no futuro, com paranóias, perseguições e carros que voam, como pode-se pensar a princípio. O contexto em que os fatos se inserem são causa e consequência muito específicos de elementos que são parte importante do universo que ele explora em sua obra, força criativa fundadora-integrante do movimento New Wave. Este movimento, que tomou corpo na década de setenta, mas já continha suas peculiaridades lançadas na década de sessenta inclusive pelo próprio K. Dick, baseia-se numa visão mais extrema do futuro apresentado pela ficção científica, comumente utilizando-se de fatores ignorados ou pouco utilizados por autores clássicos deste tipo de literatura (Wells, Clarke, Asimov), como sexo, drogas e comportamentos deviantes. Figuram na lista de personalidades desta nova literatura, que teria sido parte de uma postura reacionária intelectual, nomes conhecidos do meio da ficção, como Harlan Ellison, J. G. Ballard e Michael Moorcock e intelectuais que já caminhavam na marginalidade antes, como o escritor beat William Burroughs. O que se tem por resultado é o lançamento das fundações do que na década de oitenta convencionou-se por chamar de cyberpunk - estilo formatado por William Gibson em Neuromancer, de 1984. É fato que elementos que viriam a definir o estilo, como corrupção, realidades alteradas, tecnologia superior, abuso de drogas e um anti-herói que, em respeito ao "anti" presente em sua definição não trilham a jornada heróica campbelliana, baseiam-se fortemente em elementos dos quais Philip K. Dick extraiu as situações com as quais seus personagens deparam-se, acidentalmente ou como consequência de atos anteriores.

Interessante sublinhar o fato de que através de uma nota, presente na edição portuguesa e, espero, também em todas as outras, K. Dick lança ainda um elemento conceitual que confere à literatura cyberpunk um ponto vital à sua definição: a ausência da moral, enquanto julgamento das ações do indivíduo, neste romance. Em sua nota, o autor explica que o texto de O Homem Duplo baseia-se em experiências com narcóticos vivenciadas por ele mesmo com um grupo que, enquanto escrevia, encontrava-se morto ou em estado de psicose permanente, além de danos diversos advindos do abuso de drogas. Contudo, ele mesmo apressa-se em afirmar que não há valoração sendo feita; as pessoas da lista, amigos e conhecidos, escolheram seus próprios caminhos e tiveram que lidar com as consequências disto. "Vive-se mais rápido e, como é natural, morre-se mais rápido", diz. Este tipo de posicionamento, essencial à existência da estética e do movimento cyberpunk e seus desdobramentos, traz um ambiente em que personagens e fatos não serão julgados por suas motivações ou pelo quê seus atos desencadeiam, como é comum aos clássicos da literatura, do cinema ou de qualquer meio. O delineamento que se dá aos indivíduos abre mão do maniqueísmo em prol da individualidade e de tudo o que ela traz consigo.

É assim que Bob Arctor não se torna vilão mesmo usando quantidades cavalares da Substância D, além de substâncias conhecidas e, aparentemente, qualquer coisa que se ponha em sua frente, bem como é possível rir e mesmo se identificar com situações em que seres humanos agem humanamente, estejam eles sob efeito de drogas ou não, com vislumbres de suas incapacidades, falhas ou tentativas frustradas de suicídio. A inexistência de uma pretensa moral, ou justiça conservadora, ou o que quer que seja, não torna estes indivíduos monstros de comportamento repreensível castigados com a morte ou com o sofrimento típico da obra de Dumas ou de George Lucas, mas indivíduos sujeitos aos efeitos não só de narcóticos, mas também de estar vivo, com tudo que isso significa. É por isso que Fred entra em desespero ao descobrir que os efeitos da Substância D, carinhosamente apelidada Morte, separaram sua persona da de Arctor, bem como Arctor encontra-se numa situação sem precedentes ao ter que vigiar sua própria casa, através de monitores que acompanham todos os passos dados dentro dela. A utilização dos trajes que mudam o rosto de seu usuário constantemente, inclusive, confere à situação de Arctor/Fred um ar de perda não só da personalidade, mas da individualidade, talvez por um desnível ou uma dessincronização entre as naturezas que coabitam a mesma pessoa. As duas partes que restam, personificações do id e do superego de Robert Arctor, a primeira destruída pela entrega aos prazeres mudanos - a casa é imunda e mal-cuidada, drogas de todos os tipos, sexo irresponsável repreensível - e a segunda em eterno desprazer - não consegue lidar com garotas que o abordam, obcecado pelo trabalho -, fruto da repressão pela qual o indivíduo naturalmente passa, encontram-se também (literalmente) incompletas e angustiadas.

Sempre atento à existência humana, ou nem tão humana assim, e suas peculiaridades, Philip K. Dick, infelizmente, ainda é um autor pouco lido, e pouco divulgado, a despeito de suas contribuições excêntricas - no melhor sentido possível -, e de sua capacidade de questionar a humanidade como grupo e como adjetivo. Recomendadíssimo.

sábado, junho 24, 2006

Vidocq (Vidocq, Pitof, 2001)

Tá, o cartaz é legal

Engraçado como o cinema pode ser veículo pra coisas imbecis. Como qualquer exemplar da geração que esteve nos anos oitenta, geração esta privilegiada em vários aspectos, na minha humilde opinião, eu obviamente admiro peças do cinema pipoca, ou de algo que fica entre ele e um cinema mais marginal, ainda que por sua liberdade ao criar ou no tratamento de determinados temas, a despeito do merchandising que veiculam ou da maneira como são vistos hoje. Os dois filmes da série Predador ainda me arrancam lágrimas, em especial o segundo, e eu não vou nem começar a falar de John Carpenter, Ridley Scott e outras coisas - e caras - que tornaram o cinema dos anos oitenta algo com um quê de referencial, ou merecedor de reverência, o que no fim das contas dá no mesmo.

Mas então, ocupei-me de assistir a um tal de Vidocq (Pitof, 2001), meio que recomendado por um outro blog - o Black Zombie -, que tem uns posts que carregam opiniões muito boas sobre algumas coisas em específico, o que querendo ou não, aproxima o gosto deste que vos fala do daquele que lá posta. Voltando à peça, totalmente rodada em formato digital, antes inclusive de Attack Of The Clones, o que não quer dizer nada em absoluto, exceto que a fotografia pode ser... digamos... manipulada de maneira... ousada, ou extrema, tem um visual bastante interessante, uma trama bem legal mas um resultado muito, muito aquém de qualquer expectativa. O que eu tenho pra dizer, e eu preciso muito dizer isso, é que assistir ao filme doeu-me o cérebro, tão ruim que era.

Numa Paris que beira o steampunk classudo que o Alan Moore criou pra Liga Extraordinária, em 1830, o detetive que dá nome ao filme depara-se com um estranho caso de mortes em circunstâncias pouco comuns que, no fim das contas, culmina em sua morte pelas mãos de um vilão que até respira como o Darth Vader. Um jornalista que vinha escrevendo uma biografia do defunto começa a acompanhar o desenvolvimento do caso, fazendo as vezes de detetive ele mesmo, em busca de esclarecimentos acerca do que haveria ocorrido e, segundo ele mesmo, vingança. Pois bem, o que há de errado mesmo, como eu disse antes, não é o plot. Não mesmo. Ele é bem legal, inclusive. Há coisas inteligentes, com um ar de Conan Doyle (tive dúvidas sobre Vidocq ser algo como uma corruptela de Sherlock, mas o Doggma, do Black Zombie, me disse que o detetive francês existiu mesmo). O visual também é muito bom. Nos créditos, o nome Marc Caro, co-diretor de Delicatessen aparece como responsável pelo character design, que é um dos (o?) pontos positivos do filme, tendo sido muito bem executado pela equipe de direção de arte.

Vader e Obi Wan? Não, não. O Alquimista e Vidocq

Qual o problema então? Bem, pra ser muito direto, o problema é a direção mesmo. Diretores que usam a câmera documentalmente, quando não se trata de documentários, é claro, me dão raiva. A construção da imagem do cinema não pode - e não deve - se submeter ao acaso. Bons diretores constróem as imagens de seus filmes de maneira que o que é captado pela câmera serve ao propósito de dizer alguma coisa, ou significar alguma coisa, ou exprimir um tipo de sensação. Kubrick, em O Iluminado, usou a câmera pra meter medo através de travelings pelo Hotel Overlook que ninguém conseguiu fazer igual, e o Tarkovsky, de acordo com sua teoria de que o cinema esculpe um tempo próprio, usa a câmera pra alterar essa experiência de realização do tempo com tomadas longas, travelings e outros artifícios que servem aos seus propósitos enquanto cineasta realizador. Mas tudo isso pra dizer não que o Pitof utiliza a câmera de forma nula. Muito pelo contrário. Ele interfere tanto no que a câmera captura e o espectador vê, que é agonizante.

As cores hiper-saturadas, que ao que parece são uma característica desse cinema francês que tem invadido o mundo ultimamente (vide O Fabuloso Destino de Amélie Poulain e o próprio Delicatessen) chegam a incomodar, mas nem tanto. Elas servem a um propósito, eu diria. Talvez mais do que qualquer outra coisa sejam elas que dêem o tom de fantasia steampunk ao filme. Talvez, eu disse. Mas o uso de grandes angulares e uma câmera que nunca consegue ficar quieta incomodam tanto, mas tanto, que a experiência de assistir a esse filme foi quase traumática pra mim. A formação desse diretor, que é a de técnico em efeitos especiais, parece ser a culpada pelo sentimento que se tem de que o que assusta, ou o que intriga, é o que o olho não consegue ver, enquanto o desejável é justamente o contrário (não confundir ver com identificar). O próprio John Carpenter, ora citado, já tinha deixado isso muito claro no clássico dos clássicos O Enigma do Outro Mundo.

Essa necessidade de ação desembestada, filmada de um jeito que não se identifica o que acontece, é um tipo de olhar muito chato. O resultado final é um filme nauseabundo e atores como o Gerard Depardieu, que quando quer consegue despertar pro filme uma atenção ao elemento humano que pode ser muito útil, sub-utilizados e colocados em situação que eu imagino ser bem desconfortável pra eles (ou alguém já imaginou antes o Gerard Depardieu numa cena de luta com direito a voadoras e rolagens escada abaixo?).

Não gostei. Achei uma perda de tempo, um filme de muito mal gosto e uma aula do que não fazer pra se ter bons filmes. É uma iniciativa válida, é claro, pelo fato de ser um cinema que não é hollywoodiano, mas o problema é que ele poderia muito bem ser. E, ainda assim, as qualidades dele não passam disso. Se é pra ser um filme de ação que não seja enlatado, que seja um filme desses da safra de chineses voadores que seguiu O Tigre e o Dragão, esses sim visualmente interessantes mas com um algo mais que de fato vale a pena.

segunda-feira, junho 19, 2006

cyberpunk is not dead.